Tradicionalmente, o setor de energia elétrica, não somente no Brasil, mas no mundo inteiro, tem sido estruturado sobre três esferas: geração de energia, transmissão e distribuição. Neste modelo, o consumidor, seja ele residencial, comercial ou industrial é atendido por uma única distribuidora de energia, que possui monopólio dentro de uma determinada região, com base em um contrato de concessão de longo prazo ou através de outro arranjo semelhante. Apesar deste ‘modelo tradicional’ ter passado por muitas adaptações e alterações, no Brasil, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), mais de 99,9% dos consumidores de energia elétrica, representando mais de 60% do consumo de eletricidade do país, ainda são atendidos através deste arranjo.
Uma das primeiras inovações do modelo tradicional tem sido a abertura do chamado ‘mercado livre’, onde determinados grupos de consumidores podem contratar energia dos geradores, seja diretamente ou pelo intermédio de uma comercializadora, mantendo apenas o pagamento pelo uso da rede da distribuidora. Desde 2012, a geração distribuída, até mesmo por ser acessível para a grande maioria dos consumidores, que não têm a possibilidade de migrarem para o mercado livre, tem entrado como novo elemento, trazendo implicações profundas para a organização tradicional do setor elétrico. De repente, consumidores finais, que até então tem sido consumidores ‘passivos’, estão gerando, de forma parcial ou total, sua própria energia; transformando-se em agentes ‘ativos’ do setor elétrico. Evidentemente, o crescimento maciço da geração distribuída tem, por sua vez, impulsionado uma série de outras inovações, incluindo a instalação de medidores de energia ‘inteligentes’, novo arranjos regulatórios e a possibilidade de formar consórcios energéticos ou até usinas virtuais.
Uma das inovações mais recentes do setor elétrico tem sido o armazenamento de energia elétrica. Surge como opção para que consumidores individuais possam aumentar sua autonomia em relação aos agentes tradicionais do setor elétrico. E aparece também como complemento de unidades de geração de grande porte, principalmente usinas renováveis variáveis como fotovoltaicas e eólicas, ou como instalações independentes, prestando serviços para a rede elétrica. Adicionalmente, observamos que sistemas de armazenamento, acoplados a geradores renováveis, tem conseguido reduzir o uso de geradores termelétricos no âmbito de sistemas isolados.
É importante observar que para o setor elétrico como um todo, o armazenamento de energia não representa nada de novo. Há mais de um século, a água está sendo usada como meio de armazenamento de energia; e a primeira usina hidrelétrica reversível entrou em operação na Suíça em 1907. Atualmente, existe no mundo uma capacidade instalada de usinas reversíveis de aproximadamente 160 GW. O Brasil possui apenas três usinas deste tipo – duas em São Paulo (Pedreira – 100 MW, Traição – 22 MW), e uma no Rio de Janeiro (Vigário – 88 MW), mas opera uma vasta bateria hídrica através das suas usinas hidrelétricas como reservatórios. Diferente das usinas ‘a fio d’água’, estas usinas com reservatórios possuem a capacidade de armazenar água, e consequentemente, energia elétrica por semanas ou até mesmo por meses. Trata-se de grandes instalações, tais como as usinas de Furnas (12 GW) e Nova Ponta (510 MW), em Minas Gerais, ou Sobradinho (1 GW) na Bahia. Além de contribuir de forma muito relevante para a geração de energia elétrica, estas usinas desempenham uma papel importantíssimo no gerenciamento sazonal do recurso hídrico brasileiro, pois elas armazenam chuvas durante o período úmido e disponibilizam energia para o período seco – pelo menos, na medida que o regime de chuvas, que está sendo impactado cada vez mais por mudanças climáticas, permita que isto aconteça.
No entanto, ao longo da última década tem surgido, principalmente nos Estados Unidos, na Austrália e na China, uma nova forma de armazenamento de energia elétrica. Trata-se de instalações de menor porte, que na sua grande maioria usam uma outra tecnologia de armazenamento – bancos de baterias. Atualmente, esta nova modalidade de armazenamento ainda é pequena. Segundo análises da Bloomberg NEF a potência mundial de sistemas de armazenamento estacionário não ultrapassa os 30 GW, ou seja muito inferior à capacidade das usinas reversíveis. No entanto, a previsão é que esta nova forma de armazenamento estacionário ultrapassará os 350 GW de potência e 1.000 GWh de capacidade até o final desta década.
Evolução do mercado de armazenamento estacionário
Fonte: BNEF, 2021 (Adaptado por NewCharge).
Adicionalmente, há que levar em consideração o crescimento rápido de veículos elétricos. Segundo dados da IEA (International Energy Agency), existem atualmente aproximadamente 7 milhões de carros puramente elétricos (battery electric vehicles – BEVs), além dos veículos híbridos. Aproximadamente 50% dos BEVs rodam na China, 25% na Europa, e o restante nos EUA e demais países do mundo. Importante levar em consideração que um veículo elétrico, do ponto de vista energético, é nada mais que uma bateria sobre rodas, e que automóveis para uso particular passam a maior parte do seu tempo parados. Desta forma, os BEVs, existentes hoje a nível global, já representam uma fonte de armazenamento de aproximadamente 340 GWh. Sempre quando estiverem parados e com suas baterias carregadas, estes veículos também poderiam prestar serviços de armazenamento para seus proprietários ou para a rede elétrica como toda.
Mas por que há tanto interesse em expandir a capacidade de armazenamento? Quais são os motivos por trás deste interesse? Um dos principais motivos está na expansão rápida das fontes renováveis.
A IEA estima que a no período de 2021 a 2026, sejam adicionadas à matriz elétrica mundial entre 170 e 220 GW de novas instalações fotovoltaicas por ano, 80 a 120 GW/ano de geração eólica, além de 30 a 40 GW/ano de geração hidrelétrica e 10 a 20 GW/ano de outras fontes renováveis.
Expansão da geração de energia renovável – 2021 – 2026
Fonte: IEA, 2021.
Este crescimento de fontes renováveis não é somente essencial para contribuir à descarbonização da matriz elétrica mundial. Ele também segue uma lógica econômica, já que em muitos lugares deste mundo, incluindo o Brasil, as energias solar fotovoltaica e eólica são mais baratas que a expansão de outras fontes, principalmente a geração termelétrica. Adicionalmente, temos o fator tempo – principalmente a tecnologia fotovoltaica permite prazos de implantação muito menores que outras fontes, mesmo para projetos de grande porte. É importante ressaltar também que a IEA prevê que aproximadamente 40% da nova capacidade fotovoltaica global será realizada no formato de geração distribuída, o que reforçará ainda mais a mudança de paradigma no setor elétrico, conforme mencionado no começo deste artigo.
No entanto, as fontes fotovoltaica e eólica têm uma particularidade – ambas são fontes variáveis. Esta variabilidade traz alguns desafios para os operadores de redes elétricas. Além de estarem sujeitas a alterações meteorológicas de curto prazo, também possuem uma considerável sazonalidade, que podem ser maiores ou menores de acordo com a região. Na somatória, esta variabilidade significa que as curvas de geração fotovoltaica e eólica dificilmente coincidirão todos os dias com a totalidade curva de carga dos consumidores a serem atendidos. Na Califórnia a expansão da geração fotovoltaica tem contribuído para um atendimento de parte considerável do consumo ao longo da tarde, causando um fenômeno apelidado de ‘curva de pato (duck curve), que é um afundamento da curva de carga (o que representa a ‘barriga’ do pato), enquanto à noite, quando não há geração solar disponível, em adição a um aumento de consumo residencial, acontece um aumento abrupto desta mesma curva de carga (o ‘pescoço’ e a ‘cabeça’ do pato).
Curva de pato na rede elétrica da CAISO
Fonte: CAISO, 2016.
O clima da Europa Central ainda traz um outro desafio – lá, ao longo dos meses de inverno (dezembro – fevereiro) a baixa irradiação solar e pouca incidência de vento coincidem com o pico de consumo de energia elétrica – no jargão dos planejadores do setor elétrico alemão este fenômeno é chamado de ‘calmaria escura’ (‘Dunkelflaute’).
Exemplo de calmaria escura na Alemanha no inverno de 2017
Fonte: Agora Energiewende, 2017.
Em ambos casos, fontes renováveis variáveis precisam ser complementadas com outras fontes de energia. Tradicionalmente, este tem sido o papel de térmicas a gás flexíveis, já que esta tecnologia permite despachos relativamente rápidos. No entanto, a geração térmica, além de ser cara, também traz um relevante ônus ambiental. A redução no preço de baterias, junto com melhorias no seu desempenho e na sua durabilidade, tem permitido substituir estas térmicas a gás por sistemas de armazenamento. O regime operacional desses sistemas têm sido bastante simples – eles absorvem o excedente da geração fotovoltaica ou eólica e disponibilizam a energia durante as horas de ponta noturna, quando o consumo estiver elevado. Desta forma, estes sistemas contribuem para resolver ou pelo menos amenizar o fenômeno da curva de pato. Na Califórnia existem vários sistemas de armazenamento de grande porte trabalhando neste regime.
Mapa BESS de grande porte na Califórnia
Fonte: NewCharge, 2021.
Adicionalmente, operadores de grandes usinas fotovoltaicas têm percebido, que sistemas de armazenamento acoplados aos seus parques solares podem ser um bom negócio, porque possibilitam a comercialização de energia solar por preços diferenciados. Atualmente, quase 90% dos novos projetos de usinas fotovoltaicas na Califórnia e 70% no leste dos EUA são usinas híbridas com capacidade de armazenamento. Observamos tendências semelhantes em outros países, como por exemplo na Austrália e na China.
Outra referência interessante para a adoção de sistemas de armazenamento é o Reino Unido. Atualmente, mais de 40% da energia britânica é proveniente de fontes renováveis, no entanto, dada a sua posição geográfica (bom lembrar que se trata de uma ilha), o intercâmbio energético com os demais países europeus está limitado em aproximadamente 10% da potência total instalada. Esta situação tem criado um ambiente muito propício, não somente para tecnologias de gestão inteligente de energia, mas também para sistemas de armazenamento, voltados para a prestação dos chamados ‘serviços ancilares’. Estes são, na sua essência, serviços de estabilização de tensão e frequência de rede, além da reserva de capacidade, em momentos de carga elevada.
Mercado de serviços ancilares no Reino Unido
Atualmente, o Reino Unido possui mais de 1 GWh de sistemas de armazenamento em operação, com um pipeline de mais de 15 GWh para o futuro próximo.
A Alemanha, futuramente terá um importante desafio para resolver seu problema de ‘calmaria escura’, o que deve gerar novas oportunidades na área de armazenamento, inclusive para novas tecnologias de armazenamento de longa duração, como por exemplo, baterias de fluxo ou o armazenamento através do hidrogênio verde. Mas, a Alemanha já é um mercado relevante para o armazenamento, porém para sistemas de pequeno e médio porte, instalados ‘atrás do medidor’. Isso se deve à seguinte situação: o país foi um dos pioneiros das energias renováveis (tanto solar como eólica) na Europa e tem subsidiado a construção de novas plantas com uma tarifa ‘prêmio’. Inicialmente, esta tarifa era substancialmente superior ao preço de energia elétrica. Todavia a relação entre preço de energia e compensação pelo excedente se inverteu ao longo do tempo. Atualmente, o consumidor residencial paga na média 32,62 centavos de Euro por kWh (aproximadamente R$ 1,90/kWh), enquanto o consumidor industrial e comercial paga na média EUR 0,149/kWh (≈ R$ 0,9/kWh). No entanto, o excedente que uma instalação de geração distribuída injeta na rede elétrica é compensada com apenas 6,6 centavos por kWh, ou seja, o usuário do sistema de geração distribuída perde até 80% do valor do excedente de energia gerado. Nesta situação compensa instalar um sistema de armazenamento capaz de armazenar este excedente de geração e destiná-lo ao autoconsumo. Até o final de 2020 a Alemanha já havia instalado mais de 270.000 sistemas híbridos (sistemas de armazenamento acoplados a um gerador FV), com capacidade cumulativa de armazenamento superior a 1 GWh. E isto é apenas o começo. Vários integradores alemães já estão oferecendo soluções residenciais 100% autônomas, compostas por sistemas fotovoltaicos, bancos de baterias para o armazenamento de curto prazo, e tanques de hidrogênio e células de combustível para poder suprir energia durante as semanas da ‘calmaria escura’. O número de usuários desses sistemas 100% autônomos ainda é baixo, mas na medida que baterias e os demais componentes do sistema de armazenamento se tornarem mais acessíveis, este número crescerá, o que trará impactos muito profundos para o futuro do setor elétrico.
Sistema residencial 100% autônomo na Alemanha
Fonte: Homepowersolutions, 2021.
O crescimento destas novas modalidades de armazenamento de energia se deve, entre outras coisas, à evolução tecnológica e o barateamento de baterias. Durante muito tempo a tecnologia predominante de baterias tem sido a de chumbo-ácido, que ainda faz parte do nosso dia a dia. No entanto, a tecnologia com maior taxa de crescimento no seu uso, tem sido a tecnologia de íons de lítio. Lítio é um material fascinante: um metal de coloração cinza, extremamente leve e altamente reativo. O lítio é amplamente distribuído no nosso planeta, porém em concentrações muito baixas, devido a sua elevada reatividade. Por isto, a extração e o processamento de lítio são bastante caros. Dos cinco países com as maiores reservas conhecidas de lítio, três estão localizados na América do Sul
Reservas terrestres de lítio
Fonte: US Geological Survey, 2021 (Adaptado por NewCharge).
Baterias de lítio geralmente são compostas por um catodo formado por lítio e outros metais, um anodo de grafito, separados por uma membrana e um eletrólito líquido orgânico.
Princípio funcional de uma bateria de íons de lítio
Fonte: Department of Transportation, 2018 (Adaptado por NewCharge).
Em comparação com baterias de chumbo-ácido, elas têm proporcionado um avanço dramático na vida útil e na densidade energética. Não é exagero afirmar que a revolução tecnológica promovida por computadores, tablets e celulares e o avanço da internet não teriam sido possíveis sem as baterias de íons de lítio. Ao mesmo tempo, o preço destas baterias tem caído de mais de USD 1.000 por kWh de capacidade para um pouco mais de USD 100/kWh em 2020. Em 2021, no entanto, pela primeira vez durante muito tempo o preço das baterias de lítio voltou a crescer. Este aumento de preços se deve, não somente aos efeitos da pandemia, mas também a um aumento muito significativo da demanda por baterias. A demanda proveniente da mobilidade elétrica, do mercado de sistemas estacionários e da produção de equipamento eletrônico com baterias de pequeno porte tem superado a capacidade produtiva de forma significativa. Embora os investimentos no aumento da capacidade produtiva estejam acontecendo a todo vapor, provavelmente irá demorar algum tempo até que os preços de baterias voltem a cair. Isto pode ser uma má notícia no curto prazo, mas um sinal encorajador no médio prazo. Principalmente para aplicações estacionárias existem alternativas tecnológicas, como por exemplo, a bateria de fluxo e baterias de íons com base em outros metais (por exemplo, sódio), que oferecem perspectivas interessantes.
Como podemos constatar, o novo mundo de armazenamento é um tema muito amplo que dificilmente consegue ser abordado em um único artigo. Felizmente, haverá oportunidade de aprofundar esta discussão ao longo de mais sete artigos a serem publicados na Revista O Setor Elétrico até o fim deste ano. No próximo artigo iremos mergulhar mais a fundo no mundo das baterias e das tecnologias alternativas de armazenamento. E nos próximos artigos, avaliaremos com maior profundidade, as oportunidades e os desafios do armazenamento de energia elétrica no âmbito do setor elétrico brasileiro, que em muitos aspectos é muito diferente dos setores elétricos dos países do hemisfério Norte. Sem dúvida, 2022 será um ano muito interessante e, também, será o ano do armazenamento.